Doce herança

Doce herança
Ontem me encontrei por acaso com a Cláudia, viúva do Gilson, primo querido do meu marido. Tão querido que eu resolvi adotar como primo também, sem pedir licença nem autorização.
O Gilson era parecidíssimo com o Sidney Magal. Forte, grandão, despachado e descolado, tinha mania de carregar a gente no colo e jogar pro alto, sempre rindo pra vida.
Pois um dia a vida aprontou uma com o Gilson. Câncer no estômago e esôfago, retirada imediata dos órgãos, prognóstico ruim de doer. O médico deu 6 meses de vida. A vida deu mais 6 anos.
E com esta prorrogação abençoada ficou pra gente um Gilson marcado pela alegria de viver, e não pela angústia de morrer.
Claro que ele deve ter sentido medo e angústia, disso eu não tenho dúvida. Mas o que ele passava pra todo mundo era uma força e uma luz que não têm explicação.
Imagine você sem poder comer nada. Imagine não poder tomar um simples copo d´água. Às vezes a secura na boca era tanta que ele pedia um pouco de gelo só pra molhar os lábios.
Ele não podia engolir. E já que não podia, fez questão também de não engolir a doença. Passou a celebrar a vida mais do que nunca. Ia nos visitar e ai de nós se a televisão estivesse ligada. Ele dizia que ver TV era desperdício; o importante era ver um ao outro, perguntar “como vai” de verdade, compartilhar bons momentos. Isso era a vida pra ele.

O tempo foi passando. Perdemos a conta de quantas cirurgias ele fez. Nosso querido Gilson perdeu peso, perdeu a voz mas não perdeu a alegria de viver.
Você pode não acreditar, mas o danado ainda foi pra cozinha fazer pé de moleque pra vender. (O pé-de-moleque mais gostoso que eu já comi em toda a minha vida.)
Já faz alguns anos que ele morreu. E aí eu encontro com a Cláudia na Bendita Gula, toda serelepe (herança maior de alegria que o marido deixou, além dos quatro filhos), pedindo um pedaço de torta de chocolate. É claro que o Gilson também tinha que estar presente:
– Quando eu estava grávida, fazia o ultrassom aqui perto e vinha depois com o Gilson comer essa torta de chocolate! Hoje eu fui fazer um ultrassom –dessa vez pra tirar o útero –, e resolvi vir aqui pra matar saudade!
Essa saudade a gente vai carregar a vida toda. Mas com a alegria e a leveza de saber que agora os anjos é que carregam o Gilson no colo, encantados com o pé-de-moleque que ele anda fazendo lá no céu.